Artigos | 26/06/2025
Gustavo Fernandes, advogado e diretor de Formação do IEE
Defender a Constituição da República, no Brasil, parece ser um consenso retórico. Tal qual o amor de mãe ou a proteção das baleias, são poucos os que se sentem à vontade para, publicamente, sustentar uma posição contrária.
Ainda assim, paradoxalmente, os polos do tabuleiro político brasileiro vivem se acusando mutuamente de atentar contra a Carta, enquanto cada lado se autoproclama seu verdadeiro defensor. Isso exige que nos perguntemos, afinal, o que significa - concretamente - defender ou atacar uma Constituição.
Não se trata, evidentemente, de um gesto performático como rasgá-la ou queimá-la em praça pública. Isso seria até pueril. Trata-se, sim, de algo muito mais sério: romper não com o papel, mas com aquilo que ele simboliza. Ao longo da nossa história constitucional, firmamos pactos que moldaram o País. O reconhecimento dos municípios como entes federados dotados de autonomia e a criação de instrumentos de fiscalização da cidadania, como a ação popular, são exemplos claros.
Mas poucos compromissos são tão ambiciosos quanto aquele que reafirma a liberdade de imprensa, a liberdade artística e a valorização da sociedade civil como contrapeso às autoridades públicas - uma das pedras angulares da Constituição de 1988. Trata-se, talvez, de um dos raros pontos não dicotômicos de um texto que, em muitos aspectos, buscou agradar a gregos e troianos.
Note-se, defender uma Constituição não é um conceito universal. Não significa a mesma coisa no Brasil, nos Estados Unidos ou na Rússia. Cada Constituição cristaliza um sentimento nacional específico, construído em determinado contexto histórico e social, a partir de compromissos que não devem ser descartados pelos ventos passageiros da conveniência. Ferdinand Lassalle, com todas as críticas que sua visão suscita, faz um alerta oportuno: uma Constituição que se distancia da realidade e dos compromissos sociais que a sustentam se torna apenas "um pedaço de papel com tinta".
Resta, portanto, a pergunta inevitável: o que significa defender a Constituição no Brasil? Quais foram, de fato, os compromissos que firmamos quando, como sociedade, tentamos - pela última vez - encontrar um denominador comum? Na escola, aprendi que esse pacto incluía as lutas pelas liberdades civis, pela superação da censura, pela estabilidade dos procedimentos legais. Em síntese, aprendi que a Constituição servia para proteger as pessoas do Estado, e não o contrário.
Ironicamente, a tônica de alguns julgamentos tem, sob pretexto de defender a Carta de 1988, invertido essa lógica. Há múltiplos exemplos, os quais variam de casos de censura artística - como o do humorista Leo Lins - até argumentos como a preservação dos cofres públicos em matéria tributária, quando na verdade o que se discute é a adequação de determinado imposto à luz do Direito - como a chamada tese do século. São coisas que não eram comuns, mas que hoje são, porque nos distanciamos daqueles sentimentos.
Nesse sentido, se puder ousar uma resposta, proteger uma Constituição é reavivar o fogo daqueles sentimentos, defendendo aqueles valores enquanto sociedade, ainda que ao custo do Estado brasileiro, que deverá se curvar ao texto em todos os casos, mesmo naqueles que não sejam convenientes.
Artigo publicado originalmente no Jornal do Comércio em 26/06/2025