A tragédia silenciosa

Artigos | 26/06/2025

Amanda Cornélio, associada do IEE

O Brasil vive um contraste que desafia a lógica: somos uma das dez maiores economias do mundo, mas quase um quinto da nossa juventude simplesmente não cabe nela. Dados oficiais de 2024 divulgados recentemente indicam que 18,5% dos brasileiros entre 15 e 29 anos estavam fora da escola e do mercado de trabalho. No retrato escolar, 8,7 milhões abandonaram ou jamais frequentaram o ensino médio. Trata-se de uma tragédia que não explode em manchetes diárias, silenciosamente corroendo as bases produtivas, sociais e morais do nosso país.

Esse sumiço em massa de futuros começa quando a escola deixa de dialogar com o mundo que cabe na palma da mão. O currículo pouco conversa com as competências que hoje pagam boletos: tecnologia, cultura digital, finanças pessoais e habilidades socioemocionais.

No ensino fundamental, o sistema mal garante o básico: os dados divulgados pelo MEC no Saeb 2021 demonstram que apenas 15,3% dos alunos do 9º ano dominam matemática, e 34,9% têm proficiência adequada em língua portuguesa. Já no ensino médio, prevalece uma lógica de cumprir metas do Ideb e distribuir diplomas, não de acolher sonhos e traçar projetos de vida. Assim, só 27,1% dos jovens entre 18 e 24 anos estão matriculados no nível escolar adequado; quando deveriam se preparar para a carreira, ainda remendam lacunas que a própria escola lhes deixou. Os demais, sem enxergar utilidade no que estudam e pressionados a ajudar nas contas de casa, abandonam antes da formatura e descobrem, na prática, como é difícil ganhar dinheiro nessas condições.

Do lado de fora, o mercado tampouco oferece abrigo. As novas gerações ambicionam propósito, renda e flexibilidade, mas encontram postos que pagam pouco e exigem exatamente as competências não ensinadas. Entre 2023 e 2024, surgiram 3,4 milhões de vagas formais, mas mais de 90% em serviços de baixa produtividade e com salário baixo. Ao mesmo tempo, a Brasscom projeta déficit de meio milhão de profissionais de tecnologia até 2025.

Nas últimas quatro décadas, a participação da indústria de transformação no PIB brasileiro caiu de 33% para 15%, e a força de trabalho, de 27% para 14%. Sem chão de fábrica, desapareceram os cargos técnicos de entrada que serviam de degrau social. O resultado é frustração: parte dos jovens migra para a informalidade – por vezes no crime, como o tráfico –, e outra parcela desiste antes mesmo de tentar.

Enquanto isso, as redes sociais vendem prosperidade instantânea. Para muitos adolescentes, o feed reforça a ideia de que a escola é perda de tempo. Por que estudar fórmulas se influenciadores ganham em meses o que um trabalhador leva anos para juntar? Sonhos legítimos – dar uma vida melhor à família, ser o orgulho da rua, comer e se vestir bem – colidem com um sistema que não explica o caminho entre desejo e realização. Forma-se um círculo vicioso: fuga da sala de aula, autoimagem de fracasso, busca de atalhos de renda que raramente existem e, por fim, desalento. A ansiedade, sintoma crônico dessa nova geração, não é à toa: estamos abandonando nossos jovens para uma sorte que não existirá.

Clamar por reformas profundas é natural e necessário, mas há soluções enxutas já testadas que criam impacto mensurável rapidamente. As BETs (Behavioral Evidence Teaching Strategies) são microintervenções de economia comportamental: SMS a pais lembrando frequência, mensagens que celebram metas, bilhetes de incentivo. Um experimento com 26 mil alunos nos EUA reduziu as faltas crônicas em até 3,6 pontos percentuais por pouco mais de um dólar por família. Em Goiás, mensagens semanais para 18 mil estudantes durante a pandemia cortaram um quarto da perda de aprendizagem e reduziram o risco de abandono em 7,5%, ao custo de R$ 38 por aluno ao ano.

Essas intervenções cabem em dez minutos de configuração diária, dispensam grandes licitações e geram métricas transparentes que qualquer gestor pode auditar em tempo real. Elas não substituem o investimento em infraestrutura, mas estancam a evasão enquanto a reforma de longo prazo não chega.

Outra frente está nas organizações da sociedade civil: já são quase mil OSCs dedicadas à educação profissional, que oferecem cursos técnicos, mentoria e apoio emocional que capacitam milhares de jovens anualmente. Essas instituições representam, no total, uma parcela muito pequena da demanda anual por qualificação, mas são um dos melhores canais de melhoria. Todas carecem de voluntários, doações recorrentes, parcerias empresariais e, principalmente, atenção. Quem está dentro das empresas pode abrir portas para programas de aprendizagem; quem governa pode simplificar a contratação de jovens em projetos; quem ensina pode buscar metodologias que conectem teoria e prática.

Mesmo dentro de casa, apoiar projetos de leitura, orientar escolhas profissionais e valorizar diplomas técnicos são gestos que ajudam a retomar a confiança de uma geração hoje à deriva. Existem muitos atores trabalhando isolados para construir um futuro melhor para esses jovens; precisamos que todos trabalhem juntos. Se a tragédia é coletiva, a reação também precisa ser.

Ignorar os milhões de brasileiros que vagam entre o desalento e a informalidade custa caro em violência, improdutividade e perda de criatividade. Celebramos, com razão, a alfabetização de 95% da população, mas alfabetizar, se for apenas para consumir memes, é pouco. Precisamos alfabetizar para a vida, para o trabalho digno, para a cidadania. A tragédia silenciosa dos nem-nem exige políticas robustas e múltiplas pequenas apostas. Cada jovem resgatado representa um alívio estatístico e, sobretudo, a chance de transformar um número em rosto, uma frustração em projeto, um vazio em futuro. O país inteiro ganha em esperança e produtividade.

 

Artigo publicado originalmente na Revista Forbes em 26/06/2025

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